O escritor recifense Rafael Godoy faz sua estreia na literatura com a coletânea Bichos cegos tateiam feridas (Mondru, 62 páginas), lançada em 2024. A obra reúne 20 contos que exploram abandono, desejo, afetos interrompidos e violência urbana, narrados com lirismo brutal e marcado pela oralidade.
A força da estreia
Dividido em três partes — Os bichos, A cegueira e As feridas — o livro apresenta personagens que vivem nos limites da cidade e da linguagem. Em cada narrativa, a luta pela sobrevivência é atravessada por brutalidade, sarcasmo, desamores e renúncias, num retrato da marginalização social.
Na contracapa, o escritor pernambucano Marcelino Freire destaca a potência da obra:
“Todos os contos deste livro tipo: aquele ensinamento de Júlio Cortázar. Porrada! Eu me sinto particularmente neste livro. É como se eu tivesse encontrado uma companhia. Para eu não ficar, na esquina de um parágrafo, sangrando abandonado. Eis um autor parceiro do meu trabalho. Um cúmplice de ofício. Sempre ligado ao que acontece na rua. De olho em tantos olhos mortos de fome. O pão que o Diabo amassou é o que mais se come. O lodo do lodo do lodo do homem. Dói constatar que não temos mesmo salvação. Literatura nunca foi o terreno da boa intenção. Ai, ai. Bate. Mas também apanha, coração.”
Oralidade e lirismo brutal
A linguagem oral é um dos traços mais marcantes da coletânea. Segundo o autor, a opção estética tem um propósito político:
“Maltratar, pisar, ignorar, tratar como bicho, só vai fazer com que mais ódio cresça, se espalhe e acabe matando a gente de ignorância.”
Os contos transitam entre a violência cotidiana e o lirismo poético, revelando contradições humanas em diálogos intensos e descrições que recusam embelezar a miséria. Com narradores em primeira e terceira pessoa, Godoy propõe um mergulho direto no barro, no sangue e no corpo, sem oferecer ao leitor a ilusão de conforto.
O escritor por trás dos contos
Nascido no Recife em 1995, Rafael Cabral Godoy cresceu entre a capital pernambucana e a vizinha Camaragibe. É formado em História pela Universidade de Pernambuco e em Design Gráfico, área em que também atua como diretor de arte no estúdio PUYA!, fundado em 2024 com a esposa, Rafaela Maria.
A literatura, no entanto, acompanha o autor desde a adolescência. Começou com crônicas, mas foi no conto que encontrou sua voz.
“Bichos cegos tateiam feridas não é só um sonho realizado, é um ensinamento de persistência e um convite ao pertencimento. Agora eu consigo me chamar de escritor”, afirma.
Fragmento da obra
Um dos trechos exemplifica a intensidade da escrita de Godoy:
“Fiquei alguns anos pela casa, perambulando, mexendo nas gavetas, procurando rumo dentro da bolha. Quando pegou fogo, eu soube por um vizinho que me ligou. Corre, o fogo tá comendo tudo, tua casa agora é só cinza. Entrei contrariando os bombeiros, procurei a carta no meio do inferno e a achei no canto do que era uma estante com fotos antigas. Li uma última vez, a centésima trigésima terceira, e só então minha mãe tinha morrido, meu pai tinha sumido, e eu nem conheci esse fodido.”
Onde encontrar
Bichos cegos tateiam feridas pode ser adquirido no site da editora Mondru (link aqui).